Andes 2017 II Parte

No retorno até Punta de Vacas o Maiquel decidiu fazer um caminho pelo costado das montanhas para evitar as áreas alagadas. Sem que soubéssemos, apressou o passo e nos deixou para trás. Já perto da "água mágica" sentamos para esperar ele. Nenhum sinal! Em direção a foz do Tupungato divisamos uma silhueta, porém a cor da roupa não coincidia. Decidimos que eu iria ficar ali esperando e o Joéde foi na frente para alcançar a figura que avistamos. Seria o próprio ou alguém que tivesse vindo trazer os cavalos para as pastagens?
Tempos depois o Joéde me avisa por rádio que era o Maiquel que estava na frente e que eu poderia seguir caminho. Enquanto me esperavam, o Joéde disse ter encontrado o local de transposição do rio para chegar na água mágica. Trata-se de um cabo de aço suspenso. O avançado da tarde não nos permitia esta aproximação e deixamos a curiosidade para a próxima viagem aos Andes.
A balconista da lancheria nos recebeu com a mesma simpatia do dia anterior. Levou o Joéde até a sua casa para pegar o auto e nós mais uma vez cuidados do estabelecimento. Compramos mais milanesas para a noite, fotografamos e agradecemos por tudo. Seguimos para alta montanha.
O Lito, toda vez que chegamos em Cuevas, nos apronta uma. Em 2010 ao me apresentar e perguntar por ele, o próprio me disse: Lo qué? Lito ya murió! Desta feita ele disse que não tinha lugar para nós nos alojamentos. Como não havia muito o que retrucar visto que estávamos a mercê da sorte, cheguei a ir nas redondezas a procura de pouso. Quando retornei já estava tudo resolvido, ficaríamos em uma casa separada, logo em frente à entrada da "Vieja Estación".
A sexta amanheceu "despejada". Fevereiro costuma ter um clima árido em alta montanha. Seria um dia dedicado à aclimatação acima dos 3.000 metros, embora que de manhã descemos até Puente del Inca e Parque Aconcágua para que o Joéde conhecesse. Tudo estava normal por lá: em Puente del Inca, muito vento, e o Aconcágua com seu manto de nuvens (foto abaixo). No retorno para Cuevas demos carona para dois jovens europeus. Era um casal que passeava pela América do Sul. A comunicação foi rudimentar, em espanhol.
De tarde o "treino foi mais puxado". Nos fundos de casa estava a rampa que dá acesso à Quebrada del Derrumbe do Tolosa. Subimos por ela em ritmos variáveis. O Joéde, querendo repetir o desempenho da terça e quarta, foi na frente para ir além. O Maiquel me acompanhou por um tempo e depois ficou para trás. Na metade da tarde chegamos no escalão II, 3.600 metros de altitude. Nesta altura o tempo fechou e passou a chuviscar escarchilla que são como que grãos de gelo, diferente portanto da neve. A sensação de frio foi moderada, nada além do que já tínhamos enfrentado. O Maiquel iniciou a descida e eu tentei encontrar o Joéde com o zoom da câmera, mas sem sucesso. Ele relatou depois ter chegado à base do Hombre Cojo, ter visto as vestes do alpinista que morreu no ano passado e acrescentou ter encontrado uma cascata subterrânea. A sua bravura, por outro lado, lhe esgotou fisicamente e prejudicou o estado dos seus pés. Nenhum de nós havia levado calçado adequado para tantos dias consecutivos de marcha por terreno essencialmente pedregoso. Nestas condições os pés incham. Sua inexperiência lhe custou o insucesso do dia seguinte.
No vídeo abaixo, a tentativa de registrar a escarchilla. Nas três vezes que estivemos em alta montanha, em nenhum momento presenciamos a precipitação de neve.
As noites em altitude são congelantes. O fator físico age sobre o psicológico e sequer temos coragem de sair lá fora ver as estrelas. Passamos parte da noite abafados vendo filmes no notebook do Joéde. A expectativa de toda a viagem era para o sábado, o dia do cume. Fora a questão dos pés que ainda não preocupava, havíamos feito uma ótima aclimatação. Nenhum sintoma adverso. Adormecemos com esta esperança.
O Cerro Santa Elena representou por 7 anos um objetivo tangível. Conhecemos ele em 2010 e logo investimos para sua conquista. A ascensão pode ser a partir de Cuevas (3.100 metros) ou do monumento do Cristo Redentor a 3.830 metros sobre o nível do mar. O acesso ao monumento é facilitado pelo antigo Paso Los Libertadores. Na gana de atingir o objetivo, sempre optamos por iniciar a trilha no Cristo. Em 2010 pegamos o caminho errado e subimos pela aresta até 4.300. O despreparo na aclimatação e a necessidade de escalada em rocha impediram o avanço. Em 2013 era novembro e ninguém ousava ir até o Paso por conta do acúmulo de gelo. Nós tampouco. Agora em 2017 chegamos de auto até o marco divisório entre Argentina e Chile com uma certeza: a trilha que leva ao cume é pelo lado chileno!
Como se percebe na foto acima, era cedo quando iniciamos a marcha. A "nevasca" do dia anterior nos brindou com um toque mais romântico à montanha andina. A primeira hora de marcha seguiu sem dificuldades. No fim deste percurso uma íngreme subida aonde a altitude foi sentida bem de perto: uns cinco passos a frente e uma parada para recuperar o fôlego.
Depois da rampa o trilho dá uma guinada para a direita e segue costeando a face noroeste da montanha. Um extenso percurso até chegar na aresta oeste do cerro, porém necessário para que o aclive não ultrapasse 45º. Quando chegamos na aresta, consequentemente pisamos em rocha firme e desnuda. Pior ainda, com amontoados de escarchilla. O Maiquel não trouxe consigo nem crampons nem picaretas (piolet). A probabilidade de ele cair alguns metros batendo nas pedras era grande e portanto aconselhamos ele ficar por ali e nos aguardar. Estranho que ele nem retrucou!
A partir de então foi a primeira experiência real de montanha que tivemos na nossa trajetória de aventuras. Trazemos de 2013 as agradáveis recordações de tocar a "pata larga" do Glaciar Hombre Cojo, com a atenuante de estarmos em um amplo vale, sem vento e mínimos riscos. No Santa Elena, por sua vez, uma exposição contínua ao vento, precipícios, altitude nunca antes experimentada e muito material solto na canaleta ao lado. Nestes termos o avanço ia acontecendo no limiar entre a rocha e a canaleta. Uns 40 minutos após parei para esperar o Joéde. Com o corpo imóvel, a sensação era de congelar até os ossos.
Assim como os cumes andinos rasgam os ventos de altitude, o somatório de fatores vividos naquele momento abalaram os pilares da normalidade psíquica: abismos, frio, vento, um companheiro fora de marcha e outro que se arrastava. Medo! Pavor! Sensações surreais nunca vividas se empilhavam sobre minha mente. No outro extremo, apenas dois motivos para seguir: o cume e a oportunidade, provavelmente a única que teria!
Quando cheguei na última rampa - não tinha noção de onde estava, sempre que concluía um lance, havia outro mais acima - a canaleta de material solto se desfez e a senda feita por quem outrora já passou por ali estava bem visível. Agora a trilha fazia um zigue zague como os caracóis de Portillo. Antes de retomar as forças e seguir avistei o Joéde mais abaixo. Escaladores experientes tem o direito de se riem deste relato. O Santa Elena é um cerro fácil, nem necessita de fixação de cordas de segurança. Porém, em se tratando de entusiastas acostumados a subir cerros de apenas 600 metros de altitude, é sim uma experiência que marca toda a nossa trajetória existencial.
Quando assumi a ideia de que estava só e de que já tinha me exposto a toda sorte de perigos, cheguei ao cume! A "pilha de nervos" somada desde o início do deslocamento pela aresta, ou melhor, desde que saímos de Santa Cruz, visto que o Santa Elena era o maior objetivo da viagem, transbordou em um extase de alegria, choro e macaquices. Claro, a comemoração é proporcial ao grau de dificuldade superada!
Recobrada a consciência, voltei pelo caminho para gritar ao Joéde para que continuasse, o cume era logo ali. Gritei em vão, não vi ninguém e não me responderam.
De acordo com o registro fotográfico, foram 4 horas e 30 minutos desde o monumento do Cristo até o cume a 4.550 metros sobre o nível do mar. O avanço em altitude é muito lento e penoso o que nos leva a querer abreviar o sofrimento. Não fosse assim, as quatro horas e meia poderiam ser estendidas para até 6 horas até o cume, visto que a descida é rápida e o tempo estava aberto. Não obstante as condições favoráveis, fiquei só no cume...
Para no norte, observei, a extensa Quebrada de Matienzo até sua cabeceira denominada de Cajón del Rubio. Em sentido horário o Tolosa com seus glaciares. Além dele o cume do Aconcágua (foto abaixo). Para o nascente o vale do Río Cuevas em direção à Puente del Inca. Ao sul, a cordilheira que divisa Argentina e Chile com destaque ao Cerro Tres Gemelos (pano de fundo da foto acima). Para sudoeste o Nevado Juncal e o panorama chileno até Portillo. Enfim, esta é uma das recompensas do cume: 360º de visão.
No pé do monumento do cume o livro mantido e substituído pelo exército de montanha da Argentina. Fiz uma dedicatória à equipe que me proporcionou aquele momento (veja foto aqui). A adrenalina ou mesmo a falta de oxigênio faz com que não nos demoremos no cume. Se aquela visão estivesse na cobertura de um arranha céu, claro que ficaríamos ali por muito tempo "curtindo a paisagem"! Devo ter permanecido uns 30 minutos por lá. A preocupação com o Joéde também me colocou de volta na trilha. Já dito, a descida é rápida. O único cuidado é em não resvalar. Encontrei os dois no ponto em que o Maiquel havia permanecido. Dali descemos escorregando pelo material solto de sorte que atalhamos boa parte da trilha. Nada restava senão voltar para casa - em Cuevas - e repousar. O 18 de fevereiro de 2017 foi portanto o dia mais aterrorizante da minha existência, mas que se tornou também o mais impressionante. Estava com 39 anos de idade e neste mesmo ano teria pela frente ainda dois grandes desafios, o estágio e o TCC para concluir a Licenciatura em Geografia. Pensei: não serão mais difíceis que esta montanha!
O domingo despontou radiante sobre as cordilheiras. Meus compatriotas mal conseguiam se mover. Todos nós com bolhas nos pés. Tive que ignorar a situação porque aquele dia livre poderia render novas descobertas. Preparado os itens necessários dentro da mochila, o Joéde me conduziu até o túnel fronteiriço. Dali iniciei minha marcha pela Quebrada Benjamín Matienzo.
A inspiração para este trekking obtive através do belo relato do amigo Peter Tofte no site Mochileiros.com (confira aqui). A linguagem escrita como narrativa de um episódio nos permite prolongar a experiência do mesmo, assim como transmitir a outrem o que vivenciamos. Mesmo que todos nós trazemos fotografias e videos takes das nossas viagens, é a narrativa que ligará as partes trazendo para o presente (de quem lê) aquilo que é pretérito.
Peter, em 2008, seguiu pela margem esquerda em percurso de três dias até o "Cajón del Rúbio". Acampou por duas vezes e no terceiro dia retornou até Cuevas. Eu tinha apenas um dia e optei pelo lado direito do rio (a jusante) justamente para atingir o ponto que ele menciona, mas que não conheceu: a Laguna del Potrero Escondido. Segui envolto pelas sombras do Tolosa, próximo ao rio, uma senda sinuosa como se percebe na foto abaixo.
Por volta das dez da manhã cheguei nas imediações do Cerro Matienzo e passei a avistar a cachoeira cuja fonte provém da Laguna que procurava. Era o momento para descansar e fazer uma tomada de vídeo.
Dali por diante os sinais da presença humana limitava-se ao trilho por onde caminhava. Não demorou para divisar na colina adjacente o representante típico da fauna Andina: o Guanaco. A curiosidade foi recíproca, como se percebe na foto abaixo. Este camelídeo, junto da Vicunha, são os dois representantes selvagens da família, enquanto que a Lhama e a Alpaca já eram domesticados por ocasião da chegada dos europeus. Os quatro, portanto, estão adaptados ao frio, terreno montanhoso e a altitude dos Andes. É dito que são da família dos camelos justamente pela capacidade de permanecer quatro dias sem beber água. Foi até então a minha primeira experiência com estes animais. Devido à sua natureza selvagem, fogem quando nos aproximamos. Para resolver isto, somente o zoom da câmera.
Das margens do Cuevas tive que subir o primeiro escalão, representado pela cachoeira que se avista de longe. Não podemos nos iludir, a Lagoa é bem depois! Superado a primeira rampa, encontrei um terreno ricamente irrigado, fonte certa de alimentação para os "nativos" que fugiram diante da minha presença. Novamente uma extensa trajetória para a direita como quem vai transpor as paredes de um castelo. Não podia ser diferente, a morfologia nos 3.800 metros é periglacial, sem vegetação e rochoso, ao extremo.
Mais alguns passos e pude tocar nas águas gélidas da lagoa. Eram 12:30 e mais um objetivo foi alcançado! Águas cristalinas e, própria ou não para beber, lógico que bebi como parte da minha conquista. Com o medidor fui ver a temperatura da água, deu menos 3° (foto aqui), mas não haviam flocos de gelo boiando e os glaciares remanescentes mais altos do que o meu ânimo em ir tocá-los.
No momento de descer, como não poderia ser diferente, um vislumbre em direção ao fundo do vale, com uma bela panorâmica do Glaciar Piloto e Cajón del Rubio. O Alma Blanca, sempre protegido pelo Pan de Azúcar.
A tentativa de atravessar o rio e visitar o Refúgio Las Minas foi frustrado por conta da força da correnteza. Do meio dia em diante o volume de água aumenta consideravelmente. Retornei pelo mesmo caminho até uma "playa ancha" onde o rio se desmembrava em vários braços. Pude transpor sem dificuldade. Como estava pelas imediações do Cerro Mexico, não subi novamente, ficou sim o desejo de um dia retornar e seguir até o fim do vale. No entardecer o Gustavo veio desde Mendoza para estar conosco, no dia seguinte iríamos fazer um tour pelo Chile.
Os dois dias que passamos no Chile foram essencialmente turísticos e portanto não me aprofundarei nos detalhes. No dia 20 estivemos em Valparaiso e Viña del Mar e no dia 21 o centro histórico de Santiago. Seguimos com o relato do Gustavo em relação ao pernoite do dia 20 para o dia 21:
Llegamos tarde a lo de mi primo Aldo Brignardello a su casa en La Pintaba, cerca de San Bernardo, aproximadamente a unos 22 km al sur de Santiago. Como característica de los chilenos, nos estaban esperando para cenar. No podía faltar el trago. En esta ocasión nos convidaron con Terremoto, trago que se prepara con un vino especial, helado de piña (abacaxí) y granadina. La comida fue carne? Ja, no me acuerdo!!! Solo pasaríamos una noche en su casa, ya que al otro día iríamos a conocer Santiago. Nos tenían preparados dos lugares para dormir. Una habitación del interior de la casa en la que durmieron Ricardo y Joede, y el otro lugar era una casilla rodante (en Chile le dicen *camper*) estacionada en un patio contiguo a la casa en donde dormimos Maiquel y yo. Al otro día, nos levantamos mas o menos temprano para seguir a Santiago.
Na terça de tarde iniciamos o retorno para Mendoza. Chegamos em Cuevas antes do entardecer, pegamos nossas coisas, acertamos com o Lito e descemos a Ruta 7. Chegamos a tempo de o Gustavo preparar um macarrão com cogumelos. Estava bom. Na quarta feira pela manhã vimos alguns detalhes no auto, como a troca de óleo e o rodízio nos pneus. Assim que pronto, pé na estrada porque neste mesmo dia queríamos ir até Villa Maria, nada mais nada menos do que 610km.
No dia seguinte, o 23 de fevereiro, o objetivo era chegar até Uruguaiana ou Alegrete, todavia a quebra do extensor da correia do dínamo e bomba fez com que ficássemos empenhados nas imediações de Concórdia. Já era perto do entardecer e nos restou ser guinchados até um local seguro.